29 de março de 2018
Professora de Moda Étnica no curso Design de Moda, Julia Vidal comenta os figurinos do filme Pantera Negra.
A beleza sempre foi a forma que as culturas étnicas conseguiram se destacar em meio ao conceito de alta cultura, consolidado pelo continente europeu. Com sua arte de vanguarda rica em diversidade cultural, símbolos e saberes ancestrais, o continente africano encantou e colonizou estética e culturalmente o mundo através da diáspora de seus filhos, já dizia Raul Lody.
O filme Pantera negra traz esta riqueza visual, em uma belíssima pesquisa de figurino realizada pela dupla de mulheres negras Ruth Carter, figurinista, e Hannah Beachler, designer de produção. Ao longo da trama a indumentária é frequentemente apresentada como símbolo nacional e as estampas nos remetem as identidades étnicas presentes no filme.
Os trajes futuristas usados pelos conselheiros reais e lideres da sociedade Wakanda, são recheados de referências étnico-culturais de diversos países africanos, como os discos labiais de etnias da Etiópia, a tradição de passar na pele e no cabelo uma mistura de ocre vermelho da etnia da etnia Himba da Namíbia, lenços e acessórios da etnia Tuareg do Norte e Oeste da África, os anéis de pescoço das etnias Ndebele do Zimbabue da África do Sul.
Em quase todas as indumentárias pude reconhecer simbolismos nacionais e identidades étnicas, destacando aqui a roupa que veste a família real do filme, a rainha mãe com seu adorno de cabeça futurista com design tradicionais da etnia Zulu do Sul da África e o rei pai, que aparece em ritual ancestral vestindo estamparia adinkra, comuns aos reis ashantis de Gana.
A terra de Wakanda, espaço lúdico do filme, apresenta também as tradições “ antigas” de troca de saberes em grupo reunidos em formato de círculo e nos faz repensar a forma “moderna” que estas trocas se dão em nossa sociedade contemporânea.
No decorrer do filme relações do passado presente no futuro são a linha mestra de conexão, as indumentárias futuristas estão repletas de identidade étnicas, que se somam a desconstrução de um discurso colonizado e nos convidam a descolonização de nossas mentes.
O final do filme evidencia este convite e apresenta o protagonista, o rei T’ Challa, vestido com estamparia Kente da etnia Ashanti de Gana, símbolo do pan africanismo, a presença africana em diáspora pelos países no mundo. Voltando ao nosso “avancado futuro” relembro de uma pesquisa que realizei com o Ganês, Emannuel Marfo, que me contou sobre a situação atual deste tecido que sofre grande ameaça de extinção pela industria têxtil chinesa, que apresenta cópias com baixa qualidade e preços muito baratos nos mercados africanos.
O afrofuturismo do filme nos apresenta o paradigma em que vivemos, do avanço de um futuro que continua atrelado ao passado que oprime e silencia as diferenças e originalidades, que nos oculta sabedorias e olhares diferenciados, que constitui nossas identidades e nos convida ao retrocesso de um futuro antigo e hegemônico, o futuro que apresenta um único discurso, do colonizador opressor e capitalista.
No acender das luzes o senso de comunidade de origem étnica ecoa na platéia negra, um público alegre e ávido por sua reconexão identitária, pelo conhecimento de um passado brutalmente silenciado e retirado pela sua vontade de se ver representado no futuro.
Fazendo um adendo histórico, as lutas sociais do movimento negro na década de 70, no Brasil retomam o conceito de raça a fim de uma busca pela identidade étnico racial dos descendentes africanos no Brasil. E assim o país que se auto-identifica pelos seus diversos tons de peles, tardiamente busca e encontra suas origens étnico-raciais.
Voltando para uma atualidade com cara de passado, pude constatar algumas manchetes com discurso similar sobre a platéia que esta obra de ficção está atraindo as salas de cinema da cidade, e destaco uma delas:
Chegamos assim ao – nosso presente com cara de passado – contrário ao conceito de futuro anunciado pelo filme – a voz do colonizador e da colonização nos dias de hoje, que evidenciam as hierarquias que categorizam e atribuem valores e conceitos como verdades que compõem o senso comum, a voz que busca manter o discurso do dominador e do privilégio dos espaços reservados a minoria branca, estranhamente ecoada como maioria em nosso país…e me faz querer ressignificar o termo exótico perguntando a vocês: Não seriam os brancos os exóticos no Brasil? Seguiremos escolhendo as narrativas discursivas que instituem a voz do colonizador em nosso presente?
Para fechar, trago a sabedoria Sankofa, uma filosofia ancestral africana de Gana, símbolo também de minha marca de moda étnica, que apresenta uma ave com sua cabeça voltada para sua cauda. Este símbolo significa uma reconexão com o passado como ferramenta necessária para ressignificar o presente e construir o futuro.
Pantera negra propõe a descolonização de mentes, a partir do compartilhamento de culturas e saberes de sociedades que ainda não foram conhecidas, de forma nada sutil, sacode nossas cabeças e corações para o “novo antigo”, para o que ainda não foi dito, para o que pode ser a inovação e a libertação do homem pós moderno, seu reencontro consigo mesmo, com sua história no futuro.
Com gradução iniciada em Diseño Gráfico Univ. de Buenos Aires e finalizada em Des. Industrial/ Com. Visual-Univ. Federal do Rio de Janeiro, Julia Vidal é Pós-graduada em História África-Brasil pela Universidade Católica de Petrópolis, UCP, se especializando em Design de estamparia pelo SENAI CETQT e SENAC. Estilista e pesquisadora das etnias culturais brasileiras, é autora dos livros “O africano que existe em nós, brasileiros: Moda e design afro-brasileiros” (2015) e “Quintal Étnico: Cores e vibrações afro-brasileiras” (2015). Hoje é membro da Rede Iniciativa Jovem, Rio Criativo, AfroCriadores, atua no Conselho de Municipal de Moda e no Conselho Brasil Afro-empreendedor.
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